Uma geração indígena que não se cala

Publicado na fanpage Eco Veg / facebook em 26out2012 - Foto: Daiara Tukano
"Somos 240 povos e falamos 183 línguas distintas somos 817 963 autodeclarados ao IBGE mas somos mais: somos mais nos 74 pontos isolados nas florestas onde o IBGE não chega, e somos mais nas cidades onde a sociedade teima em não nos reconhecer, e onde muitos de nós deixaram de reconhecer nossa origem e nossa cultura.
Nosso genocídio começou faz 513 anos com a chegada de outros humanos que não nos reconheceram como iguais. Assassinatos, abusos sexuais, escravidão, assédio moral, racismo e alienação cultural são as principais violências que assombram nossos povos e nossos descendentes desde então. A maior violência de todas ainda é a psicológica, pois a discriminação alojada no consciente e subconsciente brasileiro século após século pintou uma caricatura que facilitasse justificasse e omitisse tamanha violência.
Em 1757 fomos oficialmente libertados da escravidão, e dizem que em 1888 ano da lei áurea 80% da população brasileira era negra, afirmam isto porque além do extermínio causado pelas guerras e epidemias da colonização eramos invisíveis e poucos se deram o trabalho de nos contar.
Em 1988, 321 anos depois de nossa “libertação” fomos reconhecidos plenamente como cidadãos brasileiros: deixamos de ser considerados incapazes...ganhamos RG, CPF, direitos e até nos tornamos “patrimônio”. Nos anos 60 a 80 houve uma redescoberta dos povos indígenas no brasil: não eramos mais estudados por missionários mas por antropólogos que ajudaram a revelar um pouco de nossa realidade e a grande miséria em que nos encontramos.
Foram precisas muitas batalhas em várias frentes e de muitos povos para chegar à vitória democrática da constituinte após séculos de colonização, escravidão, invisibilidade e chumbo.
Parece bobo tentar resumir 513 anos em tão poucas palavras, mas Doétiro, meu pai, nasceu “incapaz”. Como sua língua era “errada” os missionários mudaram seu nome para Alvaro, como seus deuses "não existiam" foi batizado Sampaio e não Tukano. Como eram "generosos" recebe educação, foi catequizado, completou o magistério para poder continuar a catequizar seu povo e até poderia se tornar diocesiano “e casar”: uma oferta de “futuro brilhante” a troca daquilo que se configura hoje como trabalho escravo.
Essa troca não foi de todo mal: como professor, Doétiro participou da alfabetização de seus parentes e começou uma insurgência diante da cultura cristã que lhes fora imposta. Perdeu o trabalho, mas ser considerado "incapaz" não impedia um indígena de cumprir o serviço militar, assim meu pai foi conhecer o mundo. Mal sabiam esses religiosos e esses militares que em 1980 esse "incapaz" denunciaria na ONU a destribalização e o etnocídio praticados pela igreja e pelas ditaduras militares na América latina.
Nasci dois anos depois filha de uma geração indígena que NÃO SE CALA.
Há quem argumente que os crimes cometidos faz 500 anos não sejam justificativa para que cada vez mais nos organizemos, politizemos e lutemos denunciando os crimes praticados contra nossos direitos e liberdades. A falta de visão histórica dessas pessoas continua de maneira sistemática nosso genocídio sem conseguir evitar que este se torne cada vez mais aparente e consciente tornando a sociedade cúmplice de uma das maiores tragédias da humanidade.
O grito de desespero dos Guaraní Kaiowá é mais um entre centenas de outros povos indígenas no mundo: aqueles que estão à margem de uma cultura dominadora cujos valores ironicamente consumem a si mesma.
Esta cultura que se auto-consome consome nosso planeta. Nosso grande choque cultural está na maneira em que observamos e vivenciamos o mundo: o que para eles é minerais, plantas e animais para nós é mãe, é espiritualidade e sustento.
Temos prioridades diferentes com relação a aquilo que consideramos equilíbrio global, mas ainda em minoria não nos calaremos porque nossos territórios são nossos santuários e é ali que construímos nossas aldeias seja na floresta ou na cidade.
Somos todos parentes:
Quando a aldeia maracanã é demolida sentimos a fratura
Quando o Santuário dos Pajés é incendiado nosso sangue arde
Quando os Guaraní Kaiowá morrem nossa alma grita!
Hayaya!"

- Duhigô Tukano / Daiara Figueroa; Brasília 24/10/12. — com Naiara Tukano em santuario dos pajes.


Clipping: Post Originário de: Daiara Tukano

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